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Texto para reflexão sobre Projeto de Vida

A vida é tão mais bonita quando temos pessoas ao nosso lado.

Já não vejo diferença nos dias. As vezes nem sequer sei se é segunda-feira ou sábado. Tudo é sempre igual. Hoje não é nada diferente do que foi ontem. Parece apenas mais um dia como outro qualquer. Acordei cedo, como todos os dias, “falei” com meu falecido marido, fiz minhas orações pedindo bençãos, saúde e segurança para meus filhos e netos, e fiquei esperando, olhando para o teto do quarto, até que os sons costumeiros viessem me chamar. Vez ou outra eu olhava para as camas ao meu lado. No mesmo quarto em que eu estava, dormiam mais duas pessoas. Duas senhoras que compartilhavam os roncos noturnos.

Café da manhã, chinelos arrastando pelo chão. A voz estridente da auxiliar de enfermagem que nos tirava da cama e nos levava ao banho. Quem diria que eu chegaria a esse ponto. Levada de um lado para o outro como uma trouxa de roupas.

Depois da rotina matinal,  alguém sempre liga a televisão da sala de estar e sintoniza aquela programação chata cujo som começa a se misturar com as lamúrias de alguns dos outros internos daquela casa. Minha memória vai e vem e eu sei que, em um momento ou outro eu sou uma daquelas que reclamam da vida, das dores, da saudade.

Hoje é meu aniversário de 84 anos. Pelo menos é o que estão me dizendo. Já recebi não sei quantos abraços, sorrisos e palavras de consolo. Sim consolo porque talvez eu não estivesse parecendo feliz com a data.

E não era para menos. Até onde eu me recordava, já haviam se passado mais de dez aniversários e a cada ano eu percebia que se tornavam apenas o único dia em que eu recebia a visita de parentes.

Já são quatro horas da tarde e ninguém veio. A “casa”, como costumávamos chamar aquele lugar, juntou todos para cantarem parabéns e depois colocaram na minha frente um pedaço de bolo.

Fiquei olhando para aquele pedaço do que deveria ser um prêmio por eu ainda estar viva. Para mim era apenas a mensagem de que eu ainda tinha que resgatar alguma coisa em vida antes de poder partir para o lugar que eu sonhava estar depois de cumprir minha missão na Terra.

E foi pensando assim que eu acabei mergulhando em uma lembrança que me fez tremer. Não de medo, mas de arrependimento. Vi a mim mesma quando jovem, no ensino médio, durante uma aula de Projeto de Vida. Até me surpreendi com aquela memória. Parecia muito vívida e eu até me perguntei por que aquilo havia vindo à minha mente.

Lá estava a professora se esforçando para transmitir conhecimentos. Fazendo o possível para se manter firme diante da indisciplina e pouco respeito de muitos de meus colegas. Ela sorria, embora eu soubesse que aquele dia não merecia ser lembrado.

Na ânsia de ser engraçada para os demais alunos, de afrontar e desvalorizar a professora e sua aula, fui rude e maldosa em relação à maneira como ela conduzia a aula. Eu vi que o sorriso dela perdeu o brilho e que ela reprimia a tristeza pelas palavras que ouvira. Mas para mim, o mais importante naquele momento era marcar minha posição diante da sala.

O que eu fiz não me abalou naquela ocasião. Mas agora vinha à minha mente acompanhada de remorso, angústia e tristeza. Eu senti uma lágrima correr pelo canto de meu olho direito. Eu não havia sido justa com a professora, que nos ensinava sobre a vida.

Não sei se foi um anjo ou outra coisa, mas aquelas memórias se misturaram com uma visão. Uma que me levava para aquele instante, só que em uma condição diferente. A mesma professora, a mesma sala de aula, os mesmos colegas de turma.

De um lado da sala, uma linda mesa farta de  doces, bolos, salgados e bebidas. De outro lado da sala, nós alunos, cada um com uma colher nas mãos. Eu sentia a vontade de ir até a mesa que a professora cuidava, mas não conseguia me levantar. Ela sorria, como sempre e olhava para o que estava lá.

E, em meio aquele sorriso, ela fez duas perguntas: – O que alimenta vocês? O que deixa vocês satisfeitos?

Os meus colegas olhavam uns para os outros, sem saber como responder, enquanto a professora pegava um salgado e oferecia para nós, que não conseguíamos nos mover das carteiras. Ela repetiu as perguntas.

Eu olhei para a minha colher e ela estava cheia de uma pasta estranha, de cheiro ruim. Os meus colegas também estavam com suas colheres cheias. Cada um deles tinha algo de cor diferente nas colheres.

De repente eu ouvi, bem baixinho em meus ouvidos alguém dizendo algo que fez com que meu estomago virasse.

– Você se alimenta de desrespeito? De  falta de empatia? De arrogância? De maldade? De orgulho? De palavras inadequadas? De ignorância? Então sua colher deve estar cheia disso. Tenha um bom apetite.

Naquele momento eu senti uma dor enorme no coração. Enquanto a professora, que eu havia ofendido, estava nos oferecendo delícias, nós estávamos saboreando todo tipo de coisas ruins e inúteis para uma vida saudável e feliz.

Voltei a mim, olhando para aquele pedaço de bolo. Foi necessário chegar aos 84 anos para lembrar de algo que eu esquecera por todo esse tempo, mas que certamente ficou marcado na mente daquela professora.

O que eu colhi daquilo tudo? Nada. Não fiz nada do que a professora tentou ensinar sobre a vida, sobre valores e projetos, sobre pensar no futuro, sobre fazer as coisas certas. Nada.

O que posso dizer é que estou aqui, recolhida há dez anos. Quase nenhuma visita. Nenhum daqueles colegas. Nenhum amigo de fato. Nenhuma lembrança capaz de encobrir a vergonha de ter feito o que fiz com aquela mulher.

A enfermeira responsável, que me abraçava todos os dias me perguntou: – E então? Qual o seu desejo depois de assoprar as velas do bolo? E a única coisa que consegui responder, meio engasgada foi: – Aprender a enxergar o que me oferecem de bom para minha vida.

Dizem que arrependimento é a chave para a libertação da alma. Então acredito que tenho que me arrepender muito mais, não só daquele momento infeliz na sala de aula, mas em tantos outros que foram frutos daquela imaturidade.

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